quarta-feira, 18 de maio de 2011

Genialidade à margem

Por vezes chamados de loucos. Sob outro ponto de vista, verdadeiros gênios. 
Ou, talvez, apenas mais felizes.

Antes de falar sobre moda, hoje o assunto é criação. Arte sobre outros pontos de vista. Em um contexto de “mundo civilizado”, nossos personagens de hoje conquistaram um espaço à margem. Muitas vezes foram vítimas de preconceito, mas reinventaram a arte – e a própria vida. 

Negro, louco, pobre: criatividade inabalável
Na juventude, trabalhou como marinheiro. Depois, tornou-se empregado em uma tradicional família carioca. Certa noite, porém, Arthur Bispo do Rosário acordou dizendo ter recebido uma mensagem divina, que o intitulava mensageiro de Deus, responsável por julgar aos vivos e aos mortos. O ano era 1938. A partir daí, Bispo passou a peregrinar pelas ruas, chegou a ser fichado pela polícia, foi conduzido a um hospício. O diagnóstico de “esquizofrênico-paranóico” acompanhou-o pelo resto de sua vida, em uma época em que eletrochoques, lobotomia e tratamentos violentos eram comuns para os pacientes.

Mas Bispo, acima de tudo, não gostava de aceitar o que lhe era imposto. Recusava-se a receber tratamento médico e passou a buscar inspiração em seu próprio cotidiano. Da loucura, retirou subsídio para a arte.

Entre a realidade e o delírio, os signos manicomiais ganhavam novo sentido e valor estético na sua ousada desconstrução. Objetos “inúteis” ganharam vida nas mãos do Bispo do Rosário. Foi dentro do manicômio que ele produziu todo o seu trabalho, que mais tarde seria classificado como arte vanguardista e comparado à obra de Marcel Duchamp, ganhando projeção mundial. Criou um universo lúdico, em que o lixo e a sucata eram transformados em navios, estandartes, objetos domésticos. A peça mais famosa: o Manto da Apresentação, que ele deveria vestir no dia do Juízo Final. Para tecer este manto, o Bispo, cuidadosamente, retirava os fios azuis de seu próprio uniforme. Desfazendo a veste, aproveitava fio por fio.


O discurso de Bispo do Rosário apoiava-se, principalmente, na escrita. Para ele, a palavra tinha status extraordinário. Nomes, trechos poéticos e mensagens bordadas. Em 1997, Ronaldo Fraga conquistou o prêmio de estilista revelação com a coleção “Em nome do Bispo”, inspirada no trabalho do artista.

Ricardo Aquino, curador do museu Bispo do Rosário, resume a genialidade do processo de criação de Bispo do Rosário: “A arte não serviu como tratamento. Serviu para a descoberta de outro caminho.”


Gentil profeta
José Datrino nasceu em 1917. Trabalhou no campo e teve uma adolescência conturbada: premonições lhe diziam que ele tinha uma missão na Terra. Quando adulto, tornou-se empresário do ramo de transportes. Mas foi a tragédia que aconteceu em Niterói, no Gran Circus Norte-Americano que trouxe à tona um profeta. O Profeta Gentileza.

O acidente aconteceu na década de 1960, poucos dias antes do Natal. Foram mais de 500 mortes, principalmente de crianças. Datrino disse ter ouvido “vozes astrais” que o mandavam abandonar as coisas materiais. Ele pegou, então, um de seus caminhões e foi para o local do incêndio. Lá, plantou um jardim e uma horta e fez sua morada durante quatro anos. Tornou-se um consolador voluntário, confortando familiares das vítimas da tragédia. Daquele dia em diante, passou a se chamar "José Agradecido", ou simplesmente "Profeta Gentileza".

O artista deixou suas marcas na cidade do Rio de Janeiro: à paisagem cinza, emprestou a cor. Aos distraídos, ofereceu mensagens preciosas. Foi assim que ele começou a produzir seus murais, com dizeres pertencentes a uma lógica gramatical própria. Muitos não entendem a escrita singular: “amor” com um R era amor material, “Amorrr” faz referência à trindade: um R do Pai, um do filho e outro do Espírito Santo.  

Os painéis pintados por Gentileza podem ser considerados uma das maiores intervenções urbanas. Trata-se de um verdadeiro livro urbano: 56 pilastras do Viaduto do Caju, próximo à Rodoviária do Rio de Janeiro, servem como página. Durante algum tempo, porém, elas foram cobertas por tinta cinza, a mando de autoridades. Mas protestos de toda a parte pediram as cores de Gentileza de volta. (Veja o clipe de Marisa Monte aqui!)

Um cavaleiro andante, vestido com um “manto bordado”, a conduzir seu estandarte e seu discurso. Também foi internado, tido como louco. Morreu em 1996, mas sua arte transcende. Hoje, não são poucos os artigos que carregam a mensagem Gentileza Gera Gentileza. Camisas, bolsas, adesivos. Espalhar boas mensagens é sempre uma boa ideia, não é?


Cê tá pensando que eu sou loki, bicho?  
Como um Mutante. Melhor descrição, impossível. Arnaldo Baptista começou cedo sua trajetória artística. Tocando ao lado de Sérgio (seu irmão) e Rita Lee (sua mulher, na época), alcançou fama e surpreendeu a opinião pública com os Mutantes. Assumindo os arranjos, os instrumentos e as experimentações, ele comandou um dos maiores grupos musicais de todos os tempos.

Mas a trajetória – sempre ascendente e conturbada – teve um desvio de rota. A banda e o casamento acabaram. Arnaldo investiu em alguns outros projetos, como o álbum Loki, de 1974 (incrível!), mas pouco a pouco os problemas aumentavam. Drogas e álcool deixaram marcas profundas. Internações psiquiátricas frequentes e o acidente em 1982 trouxeram sequelas graves: após cair do quarto andar de um hospital em São Paulo, ele ficou em coma por meses. Foi Lucinha – antiga fã - quem o resgatou. Resgatou através da atenção, do companheirismo, da pintura.

O documentário Loki (2009), de Paulo Henrique Fontenelle, deu grande projeção à história do artista e também ao seu trabalho com a pintura. A obra traz a trajetória de vida de Arnaldo, abordando a época dos Mutantes, os problemas com drogas, os outros projetos musicais, o encontro com a pintura. Após o sucesso do filme, novos projetos: o álbum Esphera (escute "I don't care") e inúmeros convites para shows e exposições.


 A magia da pintura trouxe novas possibilidades para ele. Mesmo com as sequelas, em uma casa sossegada (aqui mesmo, em Juiz de Fora!), ele encontrou o lugar perfeito para um ateliê. Lucinha, sua mulher e fiel escudeira, em entrevista para a revista d’O Globo, brinca: 

- Depois que as pessoas viram no filme que o Arnaldo pintava, começaram a pedir quadros para comprar, fazer exposições. É o que você vê: ele pinta o dia todo, tem quadro até no banheiro. Agora está numa fase de colagens. Não tenho mais um garfo na cozinha!



Novos projetos estão pelo ar e Arnaldo está feliz. Diante de uma nova realidade, ele conseguiu encontrar outros caminhos para a criatividade.



E a arte não serve exatamente para isso? 
Deslocar sentidos, fazer pensar, deixar o preconceito e enxergar o mundo sob uma nova ótica. E esses nossos personagens de hoje cumpriram com maestria essa função. Loucura? Arte. Inspiração para todos nós!





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